“Arábia” e a vida dura do trabalhador

O filme nacional Arábia é considerado um dos melhores de 2018. Estreou em abril deste ano. O longa aborda a exploração do trabalho, a solidão e a falta de perspectivas

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“Arábia” (2018) é um filme duro, como dura é realidade do trabalhador brasileiro, sobretudo o que ocupa postos de baixa qualificação. Cristiano (interpretado por Aristides de Sousa), personagem que conduz a história, é um trabalhador brasileiro qualquer, com o sofrimento daqueles milhões que trabalham arduamente, se sujeitando a condições degradantes de trabalho, de moradia e de alimentação, para ver uma merreca ao final do mês.

Arábia é um filme sobre a exploração do trabalho, que levanta questões, aponta vazios e questiona: qual a razão de tudo isso? São pensamentos que vêm à cabeça de Cristiano. “Pela primeira vez, eu parei para ver a fábrica, e senti uma tristeza de estar ali. Percebi que na verdade eu não conhecia ninguém, que tudo aquilo não significava nada para mim. Foi como acordar de um pesadelo. Me sinto como um cavalo velho. Cansado. Meus olhos doem. A cabeça dói. Não tenho força para trabalhar*”.

O longa levanta a importância de o trabalhador se organizar, neste diálogo entre trabalhadores rurais: “Um cachorro pequenininho não pode enfrentar dogão, não. Mas se você junta mil cachorrinhos, o dogão é que fica pequeno”.

Arábia é um filme sobre solidão, sobre o que é caminhar a vida sozinho, diante da ferocidade do tempo, da volatilidade das relações pessoais. Cristiano é sozinho. E sendo solitário, é capaz de enxergar a solidão do outro, como quando relata, em seu caderno, a compaixão que tem pelo vizinho – o rapaz que dá início a história, que faz a gente pesar que o filme é sobre ele, quando na verdade é sobre Cristiano. Ele olha o vizinho com pena, porque reflete que este vai crescer só, com uma mãe ausente, naquela cidade cheia de poeira e de pessoas velhas. É o vizinho quem encontra Cristiano acidentado e que depois acha o caderno do trabalhador, onde constam suas anotações.

É no caderno que mora a história de um cidadão brasileiro que acha que não tem muito para contar, porque estamos acostumados a achar que a vida dos anônimos, dos trabalhadores, não tem valor, é menos heroica que as dos bem-sucedidos. Mas o que é ser bem-sucedido? A que exatamente atribuímos valor? A vida de Cristiano certamente não é bem-sucedida – e não poderia ser diferente – no sentido clássico. Ele não enriquece, não constrói patrimônio, não vai dar nome a ruas. Apenas um milagre tornaria isso possível. Contudo, ele enfrenta seu destino com coragem, apesar de tudo, apesar de todos, diante das possibilidades que estão diante dele, que são bem diferentes das perspectivas daqueles bem nascidos. Cristiano segue adiante com uma força que estes talvez não tivessem.

Arábia, portanto, é um filme sobre a falta de perspectivas. É uma denúncia para aqueles que não querem enxergar (e estes provavelmente não verão o filme) o contexto social em que está inserido o cidadão brasileiro pobre. Que trabalha. E continua pobre.

Cristiano cresceu só. Foi preso. Se reabilitou. Decidiu sofrer em liberdade. Fumou maconha. Bebeu. Cantou Cowboy Fora da Lei, do Raul Seixas. Se apaixonou. Levou cano de empregador. Transportou caixas de mimosa para vender à beira da estrada. Dormiu no chão. Carregou saco de cimento. Descobriu que os de café eram melhores. Mudou de cidade várias vezes. Ficou tonto de tanto trabalhar. E nunca deixou de ser um marginal. À margem da sociedade e das benesses que o capital pode oferecer; deixando o suor de cada dia perto da fornalha quente, desalojado de si mesmo, incauto. Num quarto de hospital.

Arábia é um filme avassalador.Vendo Arábia e refletindo sobre a situação do trabalhador brasileiro, é revoltante pensar que tenha quem defenda a extinção do Ministério do Trabalho, órgão que tem, entre outras atribuições, fiscalizar as condições laborais.

Sobre o filme

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Arábia é um filme dirigido por Affonso Uchoa e João Dumans, de 2017.  Foi vencedor do Festival de Brasília. Estreou em abril deste ano nos cinemas.

Sinopse: Em Ouro Preto, Minas Gerais, um jovem (Murilo Caliari) encontra por acaso o diário de um operário metalúrgico que sofreu um acidente e por suas memórias embarca numa jornada pelas condições de vida de trabalhadores marginalizados.

*Abaixo, a transcrição da reflexão de Cristiano na íntegra, que no filme é belamente interpretada pelo ator Aristides de Sousa, que dá alma ao filme. É tão linda e profunda, que chega a doer:

“Pela primeira vez eu parei para ver a fábrica, e senti uma tristeza de estar ali. Percebi que na verdade eu não conhecia ninguém, que tudo aquilo não significava nada para mim. Foi como acordar de um pesadelo. Me sinto como um cavalo velho. Cansado. Meus olhos doem. A cabeça dói. Não tenho força para trabalhar. Respiro rapidamente. Meu coração é uma bomba de sangue. Queria puxar meus colegas pelo braço, dizer para eles que eu acordei. Enganaram a gente a vida toda. Estou cansado. Quero ir para casa. Queria que todo mundo fosse para a casa. Queria que a gente abandonasse tudo. Deixasse as máquinas queimando, o óleo derramando, pedaço de ferro abandonado, a esteira desligada, a lava quente derramando e inundando tudo, queimando a terra, a brita, e a fumaça subindo, preta igual a noite. Tampando o céu e jogando o dinheiro fora. E a gente ia estar em casa, tomando água, dormindo à tarde. A gente ia tossir a fumaça preta, ia cuspir fora os pedaços de ferro no nosso pulmão. Nosso sangue ia deixar de ser um rio de minério , de bauxita, de alumínio, e ia voltar a ser vermelho, igual quando a gente é novo. É por isso que eu queria chamar todo mundo: chamar os forneiros, os eletricistas, os soldadores e os encarregados. Os homens e as mulheres e dizer no ouvido de cada um: vamos para casa. Nós somos só um bando de cavalos velhos. Mas eu sei que ninguém ia me ouvir, porque ninguém gosta de ouvir essas coisas. Mas eu queria dizer no ouvido de cada um. A nossa vida é um engano. E a gente sempre vai ser isso. E tudo que a gente tem é esse braço forte e a nossa vontade de acordar cedo”.

Assista ao trailer:

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