O que pode acontecer na desafiante aventura de cortar o cabelo quando quem está segurando as tesouras é uma pessoa do mal, é o cabeleireiro atroz? Fui vítima, sobrevivi e conto essa história
Acordei determinado. Quase ao ponto de falar comigo mesmo algo como:
– Hoje é dia cortar o cabelo!
Não falei, obviamente, mas assimilei o sentimento.
O tempo fechado, a chuva fina, o frio, o chão molhado da calçada que eu imaginei molharia meu pé por dentro do tênis, contudo, me inibiram de seguir em frente. Sentia os cabelos do pescoço repuxando a minha nuca. Eu precisava agir. Criei coragem era perto das 11h.
– De hoje não passa! – Não falei comigo mesmo, mas pensei, não exatamente com essas palavras, em todo caso o sentimento era esse, que afinal um homem precisa ter determinação e os pensamentos certos. E o cabelo cortado, ao menos o da nuca.

Escolhi o salão ao acaso e pela proximidade, depois de a primeira tentativa se mostrar frustrada, em razão da agenda lotada do profissional. Bons profissionais do cabelo – quase sempre e salvo exceções – costumam ter demanda. Lição que eu já deveria ter aprendido. Se bem que é uma insensibilidade atender só com horário marcado, pois, afinal, cortar o cabelo nem sempre é algo planejado – às vezes é urgente, ou então a vontade apareceu só de passar em frente ao salão, ou ainda pintou uma brecha no canhenho (não confundir com mexa no cabelo, ressalva-se; (e a expressão ‘canhenho’, a qual eu nunca tinha ouvido falar e que é sinônimo de agenda, foi usada apenas para ensejar o péssimo trocadilho. Sejamos transparentes com o leitor)). Divagações.
Bati em outro salão ali por perto. Era salão desses de mulher, mas que também corta cabelo de homem – normalmente, sem muito contentamento, pois dá trabalho e não remunera igual procedimentos químicos, o que me causaria estranheza quando a atendente anunciou com entusiasmo:
– Tem horário para já! E tem que aproveitar! – disse aquela empolgada mulher.
A lição não aprendida me fez aceitar. Afinal, eu tinha que aproveitar.
Único profissional homem do espaço e que pelo jeito estava ali apenas para atender o escasso público masculino, o cabeleireiro tinha cerca de 40 anos e uma vasta cabeleira, o que lhe dava a arrogância necessária para proferir ofensas quase uma atrás da outra pelos 30 minutos seguintes.
A primeira veio assim:
– Máquina três ou quatro? – perguntou, ainda manso.
– Quatro. – respondi
– É melhor mesmo, pois a três vai deixar muito curto e fazer aparecer os espaços ralos em sua cabeça. – respondeu o profissional, aos poucos se soltando.
Outros impropérios se seguiriam dali em diante, como uma metralhadora incansável:
“O seu cabelo é muito fino”, reclamou o homem dos cabelos. “Olha o tamanho desse redemoinho” e “O seu cabelo é crespo atrás!” foram outras das queixas (não confundir com madeixas).
Em dado momento, ele me disse, como numa tentativa de criar empatia — talvez por perceber a minha contrariedade diante daquele espetáculo do homem dos cabelos — que era para ele próprio ser calvo. Falou como se na frente dele estivesse a pessoa mais calva do mundo, suposição que, além de ser uma ofensa, é uma fraude, pois que uma pessoa calva não faria o pezinho na máquina quatro ou teria redemoinho!
– Meu pai é completamente careca. – explicou-me, com o intuito também de comprovar que, sagaz que era, dera um drible no destino ao não se tornar calvo.
O corte e a sessão de ofensas chegavam ao fim quando ele deu o seu último golpe, a bala de prata:
– Gel ou cera? – perguntou.
– Nada, deixa assim mesmo. – respondi, reprimido, contando os segundos para aquilo acabar logo.
– É melhor mesmo, pois o gel ajuda a cair ainda mais o cabelo. Não use gel nem boné porque se não vai ficar ainda mais [reparem nesse ainda mais] careca – golpeu, por fim e sem dó, o cabeleireiro atroz.
Eu já deveria estar careca de saber. Melhor marcar horário em um profissional de boa reputação. Lição aprendida após a dor (não confundir com condicionador).
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