Esta manhã fez frio. Despertei cedo porque precisava de mais cobertores. Aproveitei o estímulo e decidi me levantar. Olhei pela janela: o tempo estava feio. O dia parecia não ter amanhecido.
Reforcei a vestimenta, desci dois lances de escada e abri a porta do prédio. Era pior do que eu imaginava. Ventava, e gotas geladas caíam. O chão estava molhado – aquele molhado de chuva fina, que deixa tudo meio lambuzado e aos poucos encharca os tênis.
Baforei, indeciso. Uma fumaça saiu da boca. Achei interessante e repeti. Hrrããã. A fumaça apareceu de novo. Intuí que aquilo significava que a temperatura estava realmente baixa. Divaguei: por que o bafo é quente e o sopro, frio? Hrrããã. Fhúúú.
Pensei em voltar, mas criei coragem. Eram só 50 metros até a padaria. Cruzando a quadra e dobrando à direita, eu estaria lá. Eu queria aquele pão. Não é o mais barato. É até caro. Mas é bom. E perto. Sobretudo, é um pão de qualidade. Nem cascudo, nem borrachudo. É difícil encontrar um pão decente – e quando a gente encontra, precisa valorizar.
A padaria, embora grande, é dessas que têm dono visível. Não aquele dono que a gente nunca vê. Lá está sempre alguém da família no caixa. Dependendo do dia, é a filha (julgo), o marido (presumo) ou o pai dela (suponho). São meio fechados. Não chegam a ser antipáticos, mas a educação que distribuem é contida. E não gostam muito quando compro cigarro no débito. Não dizem nada, mas o semblante denuncia o incômodo. Eu não me abalo. Continuo comprando – afinal, quem anda com dinheiro no bolso? E quem adia a vontade de fumar só pra sacar no banco, num dia em que até o bafo sai em forma de fumaça? Hrrããã.
Os donos da padaria não têm cara de quem faz pão. Talvez tortas para visitas, ou aproveitem o que sobra da produção. Acho que é isso. Eles têm um quê de avareza. Uma vez pedi a senha do Wi-Fi. O atendente disse que só o “seu alguma coisa” poderia fornecer, pois os funcionários não tinham acesso. Fui até ele – o marido, suponho – meio sem jeito. E sabem o que ele fez? Pegou meu celular bruscamente e digitou ele mesmo a senha. Seu precioso tesouro. Seus megabytes trancados a sete chaves.
Achei aquilo meio feudal. O que eu faria com aquela senha? Iniciaria uma revolução digital? “Atenção, trabalhadores da padaria! A senha está liberada! Conectem-se! Vamos congestionar a rede! Derrubar o sistema!”. No fim, é esse o nosso país: uns mandam, navegando em sua timeline; outros obedecem, escondendo o celular quando sobra um tempo. Mexe no celular quem pode. Guarda no bolso quem tem juízo.
Cheguei ao caixa com dois pães. O suficiente para um café da manhã digno, porém modesto. O pai (presumo) me disse bom dia – algo raro por ali. Retribuí. Ele foi além, sem entusiasmo: “Tudo bem?”. “Tudo bem”, respondi. Resmunguei, mais para mim: “Apesar da chuva e do frio”. Ele, assumindo-se interlocutor, retrucou com ar de correção: “Aqui é assim mesmo. Vai chover e fazer frio o dia inteiro. Não tem o que fazer.” Ok. Desculpa por ter comentado o tempo. Eu nem estava reclamando de verdade. Foi só uma observação casual. E, sim, eu sei que não há o que fazer quanto ao clima. Não sou do tipo que resmunga da vida à toa, me deu vontade de dizer. Mas só falei: “Claro, o senhor tem razão. Tenha um bom dia”.
Saí com raiva de mim por ter dado espaço para aquele tipo de gente. Pessoas cheias de si. Que acham que um “bom dia”, ainda que forçado, as torna melhores. Hrrããã. O mundo lá fora continuava frio. E chuvoso. E o chão ainda lambuzado por aquela água preguiçosa, de uma chuva fina e constante. Voltei para casa com o passo acelerado, torcendo para que o saco de pão não molhasse – e para não encontrar vizinhos no caminho. Não queria dizer mais nada. Nem “bom dia”. Nem que estava tudo bem. Nem comentar o tempo. Só queria entrar e me refugiar. Do frio, da chuva e das pessoas de cara azeda. De mim mesmo.
Coloquei os pães na mesa. Estavam intactos, apesar de o embrulho ter ficado úmido. O apartamento estava escuro, em penumbra. Acender as luzes causou uma sensação estranha, como nota fora de compasso. Os móveis pareciam de mau humor. Estavam com cara azeda. A água ferveu e a chaleira piou, como quem reclama.
Abri a cortina, na esperança de deixar entrar alguma luz. Lá fora, ainda feio. O vento balançava as árvores. O chão, molhado e lambuzado. Os carros passavam raivosos, espirrando água no para-brisa. Duas pessoas tentavam dividir a calçada – mas dois guarda-chuvas não cabem no mesmo espaço. Não encontrei nenhum raio de sol.
Fechei a cortina. Do lado de dentro estava um pouco melhor.