Por Guilherme Bittar – Agência de Notícias do Festival de Curitiba | 30/03/2023
Em 2023, a Agência de Notícias do Festival de Curitiba publicou esta entrevista com Mauricio Vogue, que morreu nesta quarta-feira, dia 25, no Natal. Referência no teatro em Curitiba, Vogue esteve no Festival de Curitiba com uma montagem de “Sonho de uma Noite de Verão”, na qual propôs uma celebração à vida — uma espécie de catarse para quem enfrentava um câncer havia cerca de três anos. Releia:
Tacatiquitacatiquitaca! É a reta final de ensaios da peça “Sonho de uma Noite de Verão”, presente na Mostra Lúcia Camargo, do Festival de Curitiba, e o diretor Mauricio Vogue cantarola ao microfone o ritmo frenético que espera dos atores.
Ele orienta o elenco:
“Olhou para cima, já tem que vir a emoção. O tuch, tuch está vindo. Começa a dançar com a pessoa que está ao seu lado. Pula, e alegria, e foi, e foi, e foi! E a festa continua…”.
A festa tem continuado para Vogue há 56 anos, desde que ele nasceu, literalmente, no circo. Uma festa intercalada com um percalço ou outro ao longo da vida. O mais grave deles se iniciou há cerca de três anos, após um procedimento para retirada da vesícula: um câncer que vem tratando desde então.
Entre períodos de maior debilidade, em que chegou a perder 38 kg, Vogue afirma estar em um bom momento e em uma fase menos agressiva do tratamento. Ele ensaia seis horas por dia e demonstra otimismo. Mas a nova fase da quimioterapia tem efeitos colaterais, como a insônia. “Do nada você acorda. Puf!”, conta.
É tiro e queda para potencializar o temperamento elétrico do ator e diretor, que aproveita as noites insones para pensar em detalhes da montagem e mandar áudios para amigos e integrantes da companhia — sonoras que denomina com os estágios notívagos (insônia 1, insônia 2, etc.).
A pressa e a vontade de fazer várias coisas, sem deixar para amanhã, foi outro efeito colateral de quem viu a morte rodear por perto, mas vem dando um drible caprichoso nela.
A festa continua e, em breve, chegará aos palcos, em notas de Shakespeare com a cadência única proposta por Vogue, no Dizzy Café. É uma peça para celebrar a vida. A estreia acontece no dia 6 de abril e terá apresentações até o dia 9, sempre às 20h.
Até lá, Vogue vive as preocupações naturais de uma estreia. Contudo, ele viu avanços nos últimos ensaios e aposta que os deuses do teatro atuarão novamente em seu favor. “Terminamos a marcação e é sempre uma alegria. Estou super na adrenalina.”
Na sua obra maior, que é a própria história, o diretor recusa o papel de vítima, sendo essa a sua primeira recomendação diante do pedido de entrevista. “Não aceito que me coloquem no papel de vítima.”
Contudo, não é ingênuo a ponto de bancar o herói. Vogue concilia o tratamento conservador, à base de quimioterapia, com opções alternativas. Compõem o enredo cirurgia espírita, terreiro de umbanda e janaúba — um remédio natural com supostos efeitos benéficos contra o câncer. “Mas não abro mão da ciência”, salienta.
Nem da ciência, nem da vida. “A gente decide a nossa vida. A hora que eu quiser me entregar, eu tenho essa chance. É só eu desistir. Mas eu não vou. Continuarei fazendo quimio e tomando a janaúba.”
Da morte, só tem medo de perder os bons momentos vindouros, como estreias de teatro. “A vida vai continuar, com as pessoas festejando e indo a estreias, e eu não vou poder”, lamenta, em tom de brincadeira.
Da maneira como a cena teatral anda na capital, há muita estreia boa por acontecer. O dramaturgo avalia que o teatro curitibano evoluiu consideravelmente desde os anos 1990, com contribuição também do Festival de Curitiba, e deve continuar crescendo. “A arte curitibana começou a ser mais vista. As pessoas prestam mais atenção nos artistas curitibanos e têm muito respeito.”
A seguir, os principais trechos da entrevista
Como você se sente agora, após terminar o ensaio?
Mauricio Vogue: Eu estou superelétrico. Hoje terminamos a marcação, e isso é sempre uma alegria. Mas chega uma hora em que a bola começa a baixar. Eu vou para casa, mas a minha cabeça não para.
Estou tendo insônia, trabalhando de madrugada. Primeiro, pela quimioterapia. É inacreditável: quando você dorme e seu corpo está mais calmo, ela começa a trabalhar. Do nada você acorda. Puf!
E não consegue voltar a dormir?
MV: Não consigo. É sempre umas 3h30. É muito maluco. Eu mando mensagem para as pessoas com quem trabalho — cenógrafo, produtora, coreógrafa. Eles estão dormindo, mas sei que, pela manhã, vou ter as respostas. Aí vou colocando assim: insônia 1, insônia 2. Eu mando para eles porque tenho tanta coisa para conversar.
Há muitos detalhes ainda para resolver sobre a peça?
MV: Muitos. Mas vai dar tudo certo. Os deuses do teatro ajudam. Chega na hora, tudo começa a acelerar e a se resolver. Parece que a gente vai deixando tudo para a última hora, mas não é. Acontece automaticamente. Coisas que a gente poderia ter resolvido um mês atrás, mas não adiantaria. É um processo natural.
Como foi descobrir a doença?
MV: Eu fui tirar a vesícula, que estourou. Qualquer cirurgia que você faça — pode ser até do dedo — eles perguntam se você quer uma biópsia. Eu não queria, mas meu marido me convenceu. Foi sorte, pois foi um diagnóstico precoce. Se eu não tivesse feito a biópsia, eu só iria descobrir em 2021 — e descobri em 2019 — e talvez não adiantasse mais.
Na hora, é um baque. Você começa a suar frio, pois acha que acabou. Mas, depois do terceiro dia, fui trabalhando a mente. Sempre tive muita fé. No começo, eu perdi 38 kg por causa do tratamento. Os médicos tentaram tirar o tumor, mas ele era tão pequenininho — pois era diagnóstico precoce mesmo — que não conseguiram. Só que se alastrou. Sabe quando mexe no vespeiro? A partir daí, comecei a quimioterapia. Eu estava muito magro, aquela pele escura, o pulso desse tamanhinho. Não tinha condições de trabalhar. Não saía da cama, mas nunca fiquei no hospital.
Você permanecer convicto de que vai dar tudo certo na peça, por exemplo, é uma forma de fé.
Eu sempre tive isso. Eu sou espírita, então fiz cirurgia espírita. Fui a terreiros de umbanda. Tomo um remédio natural extraído de uma raiz que se chama janaúba. Fui em tudo. Se você falar para mim que lá longe tem uma senhorinha que benze, eu vou na senhorinha. Mas nunca vou deixar a ciência, que é a quimioterapia.
Agora o tratamento está em um estágio que já não é tão agressivo?
MV: Agressivo foi lá no começo. Agora, não é nada agressivo. Por todas as questões do tratamento, da minha fé, religiosidade, espiritualidade, os amigos, a alimentação que eu mudei, eu comigo mesmo, conversando e refletindo, eu acho que isso foi ajudando.
Eu tenho um cateter hoje em dia, pois eu não tinha mais veia no braço. Demorei um pouco até aceitar colocá-lo. Hoje, eu chamo de cateter do amor.
E você mudou muito? Como esse processo te transformou?
MV: Quando você está em uma situação de doença crônica, te olham e te dão a sentença de morte. O câncer não é uma sentença de morte. Esse é um dos problemas que todo ser humano tinha que saber como lidar, pois afeta quem está com câncer.
Não sou vítima, e isso não é luta. Luta, para mim, é guerra. Eu estou vivendo e buscando o melhor para mim e vou continuar vivendo como qualquer pessoa. Está cheio de gente doente. Alguns morreram antes de mim, inclusive. A própria pandemia mostrou isso.
A gente decide a nossa vida. Então, a hora que eu quiser me entregar, eu tenho essa chance. É só eu desistir. Mas eu não vou. Continuarei fazendo quimio, tomando meus remédios, tomando a janaúba.
Fiquei mais frágil. Nessa fragilidade, eu enganei o câncer mostrando que eu estou bonzinho. Uma espécie de acordo: “Ah, olha como você me mudou”. Para mim, é uma maneira de enganar o próprio câncer.
Ontem aconteceu uma coisa. Cheguei irritado ao ensaio. Havia muito tempo que ninguém me via assim. Eu tinha tido uma insônia muito pesada. Cheguei aqui brigando, pegando no pé.
Não é do seu perfil?
MV: Era. Mudou porque eu fiquei mais frágil. Hoje, um dos atores, o Rafael Camargo, falou: “Maurício, percebi uma coisa: você driblou o câncer e voltou a ser quem era. Eu acho isso legal, pois você está vencendo o câncer e está com mais poder do que ele”.
Você também não deve ficar pensando nisso o dia todo.
MV: Não. Eu já cheguei a esquecer de fazer quimio. Minha psicóloga falou que isso era um bom sinal.
Como ajudou o acompanhamento psicológico?
MV: Me ajuda bastante por causa da ansiedade, medo de morrer, essas coisas. Eu não tenho medo de morrer propriamente. Perdi alguns amigos e eu sabia que a vida iria continuar aqui. Eu tive momentos muito felizes que eu queria que as pessoas que se foram estivessem vivendo. Aí eu penso: “Ai, que dó, eles se foram e não estão curtindo esse momento”.
Eu me pergunto se, quando eu morrer, a vida vai continuar e todo mundo vai continuar festejando e indo a estreias, e eu não vou poder. E eu não sei para onde eu vou. Quem sabe eu vou para um lugar muito melhor que uma estreia. Eu adoro estreias, tanto dos outros quanto das minhas.
Houve muitas demonstrações de afeto e solidariedade?
MV: Em muitos momentos, eu me emocionei muito quando via amigos buscando uma palavra. Mudou o trato. Sinto que não me olham com aquela cara de “ai, tadinho”. Ai, tadinho nada. Mudou o cuidado dos amigos, de querer estar mais perto de mim. Para viver, a pessoa não precisa estar doente, mas se tocar: “Meu, vamos aproveitar a vida, independentemente de estar com doença ou não, e estar juntos”.
Algumas pessoas se afastaram, mas eu também entendi. A pessoa sofre por antecedência. Ela gosta tanto de mim que não quer estar por perto.
E a peça “Sonho de uma Noite de Verão” seria uma espécie de catarse?
MV: Tanto “Anjo Maldito”, que estreou recentemente, quanto “Sonho de uma Noite de Verão”. Cada uma tem características muito diferentes.
Como é se dar conta, de maneira tão potente, da finitude da vida ao descobrir uma doença grave?
MV: Eu sinto uma pressa. Antes, eu fazia tudo mais devagar. Parece piegas o que vou falar — e, se parecer, eu sou piegas mesmo —, mas trabalhar com arte e falar o que eu quero me deixa muito bem, e os meus resultados de exames mudam. É inacreditável. É louco, pois a doença também é psicológica. Claro que existem diagnósticos que não são precoces e estão em estágio terminal.
No meio artístico, dizem que você é generoso e procura dar oportunidades para atores. Como é isso?
Sim, eu sempre procuro. Nesse elenco, por exemplo, temos cinco atores que eu não conhecia. Foram pessoas que conheci em uma oficina que ministrei e que têm muito talento. A gente precisa alimentar a arte com pessoas novas. Elas abrem a minha cabeça. Conforme ficamos mais velhos, ficamos chatos. Eu acho que sou muito jovem ainda. Tenho essa ansiedade da juventude.
Às vezes, eu tenho que colocar atores que eu já confio, pois é pouco tempo de ensaio. Como a gente tinha tempo, esses atores jovens tiveram uma participação legal dentro do espetáculo.
Como é possível manter um teatro, como vocês fazem há 19 anos com o Teatro Regina Vogue?
MV: Na luta. Projetos, projetos, projetos. Lei Rouanet, espetáculos que vêm de fora. Só com a bilheteria, não dá. Tivemos um patrocínio durante cinco anos. Agora estamos atrás de outra empresa para fazer parceria e ter o nome da empresa aqui. E a própria empresa pode usar o espaço para palestras e outras ações.
Como você avalia a evolução do teatro em Curitiba?
MV: Só crescimento. Vemos isso agora com quatro companhias curitibanas participando da Mostra Lúcia Camargo, do Festival de Curitiba. Nunca aconteceu isso. Esse crescimento vem desde o final dos anos 1990, quando surgiram companhias como a Sutil, do Felipe Hirsch e Guilherme Weber, com “A vida é cheia de som e fúria”.
Já tínhamos destaques em novelas. A Guta Stresser estava na Grande Família. A Simone Spoladore tinha feito Esperança. Mas, falando propriamente de teatro, foram surgindo muitas companhias de pesquisa, de laboratório, experimentais.
Uma coisa vai puxando a outra, com uma formação mais contemporânea de artistas e diretores. Além disso, companhias de comédia, como a Companhia dos Palhaços e a Antropofocus, que faziam um humor pesquisado.
O Festival de Curitiba contribuiu para isso?
MV: Sim, com muita visibilidade. “A vida é cheia de som e fúria” apareceu no Fringe. Alguns curadores assistiram e levaram o espetáculo para São Paulo. Foi uma explosão! Depois, vieram outras companhias, como a Companhia Brasileira. Revelaram o Beto Bruel, o gênio da luz, para o Brasil inteiro.
A arte curitibana começou a ser mais vista. Agora as pessoas prestam mais atenção nos artistas curitibanos e têm muito respeito. Quando você vai para São Paulo ou Rio e fala que é ator de Curitiba, te olham de outro jeito — tipo: “aí tem coisa boa”. E tem: disciplina, organização, concentração, estudo.

