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“À Meia Noite Levarei Sua Alma”: subversivo, inovador e brutal

Por Giovanna B. Bertoni*

O ano é 1964. O Brasil enfrenta os primeiros meses de uma Ditadura Militar, e em meio ao ultraconservadorismo dominante  –  que buscava ao máximo mascarar a realidade perturbadora do país  –  José Mojica Marins resiste ao regime de censura e imprime, pela primeira vez, uma obra de horror nas telas brasileiras.

O que é a vida? É o princípio da morte. O que é a morte? É o fim da vida. O que é a existência? É a continuidade do sangue. O que é o sangue? É a razão da existência.

As falas que abrem ‘À Meia Noite Levarei Sua Alma’, primeiro trabalho de Mojica como o infame Zé do Caixão, já denunciam a sina transgressora a ser praticada ao longo do filme. A obra subversiva propaga uma atmosfera brutal, gráfica e chocante, onde a violência é usada com deleite para satisfazer os desejos vis do protagonista.

Trajado de capa, cartola e unhas alongadas, o coveiro ‘Zé do Caixão’ atravessa toda narrativa com um único propósito: tendo fracassado em engravidar sua esposa, busca encontrar uma mulher que julgue física e intelectualmente apta a lhe gerar o filho perfeito. A partir dessa premissa, aterroriza o vilarejo onde vive ao empreender sua missão.

Os escrúpulos do vilão progressivamente tornam-se nulos. O impudor que inicialmente se apresenta no ato de comer carne durante uma Sexta-feira Santa enquanto observa fiéis em proscrição – gargalhando, como se assistisse a uma comédia – torna-se insignificante e até inofensivo ante ao ápice da violência que é capaz de exercer com as próprias mãos no desenrolar dos acontecimentos. 

A hediondez impune, tão chocante nos primeiros minutos, se converte, então, em algo habitual. Entretanto, quando o fim se aproxima, o executor das transgressões se depara com as consequências de suas ações. O filme passa a adotar um visual fabulador, guiando o protagonista por um pesadelo ritmado. A morte e a vida participam dessa dança, a superstição e a descrença se unem, e o que assistimos é um baile de contradições, que atormentam o tão temido Zé do Caixão e são capazes de abalar seu ceticismo característico.

Ainda que inevitavelmente inspirado pelo modelo clássico de terror hollywoodiano, Mojica é inovador ao apresentar um horror materialista, carregado por um personagem ao mesmo tempo macabro, cético e brutalmente humano. Sem se apoiar no sobrenatural, a obra explora o comportamento truculento de uma figura grotesca, mas ainda assim sugere a contraposição aos dogmas de uma comunidade tradicional, conservadora e moralista – ato desafiador, considerando o contexto ditatorial da época.  

Acima de tudo, ‘À Meia Noite Levarei Sua Alma’ é símbolo do cinema verdadeiramente popular, feito pelo povo e para o povo, refletindo as contradições naturais de uma sociedade perdida, mas que se encontra, de alguma forma, na confusão da arte. A obra, afinal, enfrentou as limitações de um baixo orçamento e o posterior peso do censor da ditadura, e merece permanecer um longevo pesadelo – fúnebre, mas, ao mesmo tempo, orgulhosamente familiar – na memória de quem assiste e perpetua sua história. 

*Giovanna B. Bertoni é estudante de Jornalismo em Curitiba; especial para o Revérbero

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