A Anatomia de um Apagão Anunciado: O Caso ENEL e o Padrão das Privatizações no Setor Elétrico Brasileiro

Paulo Pinto/ Agência Brasil

Por Leandro Grassmann
Engenheiro Eletricista | Conselheiro | Executivo Sênior | Mediador e Negociador

A recente decisão dos governos federal, estadual e municipal de São Paulo de iniciar o processo de caducidade do contrato da ENEL não é um fato isolado, mas sim o clímax de uma crise previsível e o reflexo de um padrão preocupante observado no setor elétrico brasileiro desde as privatizações da década de 1990. A análise aprofundada dos dados financeiros, operacionais e regulatórios da concessionária, em paralelo com casos similares como o da Light no Rio de Janeiro e da Copel no Paraná, revela um modus operandi que levanta sérias questões sobre o modelo de gestão privada de serviços essenciais.

A Crise da ENEL: Negligência Intencional?

A decisão de encerrar o contrato com a ENEL foi motivada por uma sequência de apagões e pela deterioração contínua da qualidade do serviço em São Paulo [1] . Relatórios da ARSESP – Agência Reguladora de Serviços Públicos do Estado de São Paulo , anteriores aos eventos mais críticos de 2025, já apontavam para um cenário de grave degradação da infraestrutura. Vistorias realizadas em julho de 2025 documentaram “irregularidades recorrentes”, “falta de poda” e uma “grande quantidade de postes com elevado grau de deterioração”, sugerindo que a falta de manutenção preventiva era crônica e de longo prazo [2].

Essa deterioração dos ativos contrasta fortemente com a saúde financeira da empresa. Enquanto a infraestrutura se degradava, a ENEL registrou um lucro líquido global de €7,02 bilhões em 2024, um aumento de 104% em relação a 2023, e propôs um aumento de 9% nos dividendos pagos aos acionistas [3]. No mesmo período, os investimentos da empresa no Brasil foram reduzidos em R$ 2,3 bilhões em comparação com o ano anterior [4].

Essa estratégia de maximizar lucros e a remuneração dos acionistas em detrimento do reinvestimento na infraestrutura é um dos pilares da crise. A situação é agravada pela drástica redução do quadro de pessoal. Entre 2020 e o terceiro trimestre de 2025, a ENEL reduziu seu quadro de trabalhadores em São Paulo em mais de 25%, um corte de quase 7.000 postos de trabalho, incluindo equipes próprias e terceirizadas [5]. A consequência direta é a precarização da manutenção e a incapacidade de responder com agilidade a eventos climáticos, tornando os apagões mais longos e frequentes.

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O Modus Operandi da Privatização

O caso da ENEL não é único e espelha um padrão identificado em outras empresas privatizadas do setor. A Light, no Rio de Janeiro, privatizada em 1996, entrou com pedido de recuperação judicial em 2023 com uma dívida de R$ 11 bilhões, após anos de serviço de baixa qualidade, redução de pessoal e problemas de gestão [7]. A Copel, no Paraná, privatizada mais recentemente, também demonstra uma queda vertiginosa nos indicadores de qualidade, caindo da 10ª posição em 2021 para a 29ª em 2024 no ranking da ANEEL, uma trajetória que acende um alerta para um futuro similar ao da ENEL [8].

Este padrão pode ser descrito como um ciclo:

1.Aquisição e Promessas: A empresa privada adquire a estatal, muitas vezes com financiamento público, prometendo investimentos e modernização.

2.Otimização de Custos: A nova gestão implementa um agressivo plano de corte de custos, focado na redução de pessoal e na terceirização massiva, precarizando a mão de obra.

3.Maximização de Lucros e Dividendos: Os recursos economizados com cortes e a receita da operação são direcionados para maximizar o lucro e a distribuição de dividendos aos acionistas, em vez de serem reinvestidos na infraestrutura.

4.Sucateamento dos Ativos: A falta de investimento em manutenção preventiva e modernização leva a uma degradação progressiva da rede.

5.Colapso do Serviço: A infraestrutura sucateada, combinada com um quadro de pessoal insuficiente, torna o sistema incapaz de suportar eventos adversos, resultando em colapsos e apagões prolongados.

6.Intervenção Estatal: Diante da falência operacional e/ou financeira da concessionária, o poder público é forçado a intervir, seja através de um processo de caducidade, seja assumindo os custos de uma reestatização ou de uma nova licitação, arcando com o ônus de reconstruir uma infraestrutura deliberadamente negligenciada.

Este ciclo, observado desde as privatizações dos anos 1990, levanta uma questão fundamental: o custo para o Estado de “resgatar” e recapacitar uma infraestrutura sucateada não seria superior ao investimento necessário para manter a empresa operando de forma eficiente sob gestão pública? A história da AES Eletropaulo, antecessora da ENEL, que também seguiu um roteiro de endividamento, envio de dividendos ao exterior e falta de investimentos, serve como um precedente sombrio .

Governança Corporativa Predatória: Uma Análise Crítica

Sob a perspectiva de governança corporativa, as práticas adotadas pela ENEL em sua operação no Brasil não apenas carecem de adequação, como caracterizam-se como exploratórias e potencialmente predatórias. A governança corporativa responsável pressupõe um equilíbrio entre os interesses dos acionistas e os das partes interessadas (stakeholders), incluindo consumidores, funcionários e a sociedade em geral. No caso da ENEL, observa-se uma sistemática priorização dos interesses dos acionistas em detrimento de todas as outras partes.

A estratégia de maximização de lucros através da redução de investimentos em manutenção preventiva, enquanto simultaneamente aumenta-se a distribuição de dividendos, caracteriza uma forma de value extraction (extração de valor) predatória. Ao invés de reinvestir os lucros na modernização e manutenção da infraestrutura — uma obrigação contratual e regulatória — a empresa opta por transferir recursos para acionistas internacionais. Isso é particularmente problemático em um setor de utilidade pública, onde a qualidade do serviço é essencial para a vida cotidiana de milhões de pessoas. A redução de 25% do quadro de pessoal, enquanto lucros crescem 104%, não apenas viola princípios de responsabilidade social corporativa, mas também demonstra uma desconexão entre o desempenho financeiro e o operacional.

Além disso, a prática de prometer investimentos substanciais no momento da aquisição (como os US$ 900 milhões prometidos pela ENEL em 2018) e depois cumprir apenas parcialmente (investindo ~US$ 600 milhões) configura uma violação de boa-fé contratual. Essa conduta, repetida em múltiplas concessionárias privatizadas, sugere um padrão deliberado de greenwashing regulatório — fazer promessas ao regulador e aos órgãos públicos que não serão cumpridas, confiando que as penalidades serão menores que os ganhos obtidos com a redução de investimentos.

A ausência de mecanismos efetivos de accountability, tanto por parte da empresa quanto dos órgãos reguladores, permitiu que esse modelo predatório persistisse por anos. A ANEEL, embora tenha aberto processos investigativos, não conseguiu impedir o sucateamento progressivo da rede. Isso levanta questões sobre a capacidade regulatória do Estado e a necessidade de reformas estruturais na forma como concessões de serviços públicos são monitoradas e fiscalizadas. Uma governança corporativa verdadeiramente responsável exigiria que as concessionárias privadas de serviços essenciais operassem sob um modelo de stakeholder capitalism, onde o interesse público não seja subordinado ao lucro privado, mas sim seja seu fundamento.

Responsabilização de Gestores: Uma Necessidade Urgente

Um aspecto crítico frequentemente negligenciado no debate sobre privatizações é a responsabilização pessoal dos gestores que deliberadamente adotam estratégias de sucateamento de infraestrutura. Os executivos que assinam contratos de concessão com promessas de investimento, que aprovam planos de corte de custos sabidamente prejudiciais à qualidade do serviço, e que deliberadamente priorizam a extração de valor em detrimento da manutenção de ativos essenciais, deveriam ser responsabilizados legalmente.

No caso da ENEL, os gestores que implementaram a redução de 25% do quadro de pessoal enquanto lucros disparavam 104%, que reduziram investimentos em R$ 2,3 bilhões enquanto aumentavam dividendos em 9%, e que deixaram a infraestrutura se deteriorar a ponto de gerar apagões massivos, agiram com negligência intencional. Essa negligência não é um erro de gestão, mas sim uma escolha deliberada de priorizar acionistas em detrimento do interesse público. Quando essa escolha resulta em danos comprovados à população — apagões que afetam milhões de pessoas, riscos à saúde pública, prejuízos econômicos imensuráveis — ela transcende o âmbito da gestão corporativa e entra no domínio da responsabilidade criminal.

A legislação brasileira prevê mecanismos de responsabilização civil e administrativa para gestores de empresas públicas e concessionárias que causam prejuízos ao erário ou ao interesse público. Esses mesmos mecanismos deveriam ser aplicados com rigor aos gestores de concessionárias privadas que, deliberadamente, deixam deteriorar infraestrutura essencial. Além disso, seria apropriado considerar a responsabilização penal por crime contra a administração pública, particularmente se há evidência de que as ações foram tomadas com conhecimento de seus efeitos prejudiciais.

A falta de responsabilização pessoal dos gestores cria um incentivo perverso: executivos podem implementar estratégias predatórias, acumular bônus e compensações baseadas em lucros de curto prazo, e quando o sistema colapsa, simplesmente se afastam da empresa, deixando o Estado e a população a arcar com os custos. Isso não é apenas injusto; é um subsídio implícito ao modelo predatório. Para que as privatizações funcionem adequadamente— ou para que se reconheça que não funcionam — é imperativo que haja consequências reais para os gestores que deliberadamente sabotam o serviço público em benefício próprio.

Conclusão: Um Modelo em Xeque

A crise da ENEL, portanto, transcende a má gestão de uma única empresa. Ela expõe as falhas estruturais de um modelo de privatização que, ao priorizar o retorno financeiro de curto prazo para os acionistas, negligencia o caráter essencial e estratégico do fornecimento de energia. A busca pela caducidade do contrato é uma medida drástica, mas necessária para sinalizar que a concessão de um serviço público exige compromisso com a qualidade, segurança e, acima de tudo, com o bem-estar da população.

O debate sobre o papel do Estado e da iniciativa privada na gestão de setores estratégicos é mais pertinente do que nunca. Enquanto o mundo vê uma onda de reestatização de serviços essenciais, com 167 empresas de energia elétrica retornando ao controle público globalmente nos últimos anos [9], o Brasil parece estar preso em um ciclo de privatizações cujos resultados se mostram, no mínimo, controversos. O caso ENEL deve servir como um ponto de inflexão para uma reavaliação profunda deste modelo, antes que o próximo apagão anunciado se concretize em outra metrópole brasileira. Mais importante ainda, deve ser um catalisador para a implementação de mecanismos efetivos de responsabilização de gestores que, deliberadamente, colocam lucros privados acima da segurança energética de milhões de brasileiros.

Referências

[1] G1. “Após reunião, governos federal, estadual e municipal decidem iniciar processo para encerrar contrato com a Enel”. 16 de dezembro de 2025.

[2] Estadão. “Vistoria no 2º semestre detectou falhas em rede da Enel em SP: ‘Falta de poda e postes danificados'”. 17 de dezembro de 2025.

[3] Valor Econômico. “Lucro da Enel dispara em 2024, mas receitas caem com redução dos preços de energia”. 13 de março de 2025.

[4] Enel RI. “Demonstrações financeiras individuais e consolidadas”. 31 de dezembro de 2024.

[5] ICL Notícias. “Quadro de funcionários da Enel perdeu 6.777 trabalhadores em São Paulo”. 17 de dezembro de 2025.

[6] ANEEL. “Ranking da Continuidade do Serviço de Distribuição de Energia Elétrica de 2024”. 02 de abril de 2025.

[7] CTB. “Crise da Light expõe fragilidades da privatização de setores estratégicos”. 18 de maio de 2023.

[8] Gazeta do Paraná. “Ranking da Aneel aponta Copel como uma das três piores distribuidoras de energia do Brasil em 2024”. 12 de abril de 2025.

[9] Le Monde Diplomatique Brasil. “Anatomia de um apagão: A crise da privatização dos serviços públicos”. 28 de outubro de 2024.

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