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Caso Raul Pelegrin: defesa cobra do estado humanidade que seu cliente não teve

O empresário Raul Pelegrin, 41 anos, foi preso no dia 14 de março de 2024 após demonstrar absoluto desprezo pela vida humana, ao cortar a corda de sustentação de um trabalhador que executava um serviço no prédio no qual ele morava.

A tipificação para a prisão não poderia ser outra: tentativa de homicídio. Por pura sorte, Raul não se tornou um assassino e um trabalhador não caiu de 27 andares se estatelando no chão, no que seria uma morte brutal. O destino e o sistema de segurança do dispositivo que sustentava o trabalhador não permitiram que a tragédia acontecesse, mas foi exatamente o que Pelegrin, morto na prisão na última sexta-feira, dia 5, tentou fazer.

Nos últimos dias, o Revérbero deu voz a Raul, através da defesa dele, repercutindo a morte e a posição de seus defensores. Muitos nos criticaram por isso. Alguns com argumentos coerentes, os quais agradecemos e absorvermos para a melhoria contínua de nossa linha editorial. Volte e meia falamos, e não é discurso para agradar a plateia, que não somos donos da verdade. Estamos sujeitos a erros e acertos, e naturalmente nos esforçamos para que os erros sejam muito menores,.

Outros apontamentos, no entanto, apenas destilaram ódio e uma radicalidade própria dos bolsonaristas – e nesse caminho, nos desculpem os radicais, nós não vamos seguir.

O estado, através da Sesp ou do Ministério Público, não se manifestou sobre a morte de Raul, portanto não podemos ser cobrados pela falta do contraditório.

Sabemos que a principal vítima dessa história é o trabalhador sobrevivente, mas mantemos nossa posição na defesa dos direitos humanos, que devem ser assegurados a todos, inclusive aos bárbaros. A isso damos o nome de civilização. O estado não pode se igualar na violência – embora muitas vezes seja exatamente isso que faça todos os dias e até pior, principalmente contra pretos e pobres.

Não subordinaremos a nossa atuação apenas à expectativa de nossa comunidade. Talvez fosse o caminho mais fácil para crescermos em cliques e interação, mas cabe ao jornalismo também abordar temas às vezes incômodos e que questionam possíveis verdades absolutas.

Uma das críticas que recebemos é que milhares de vidas são ceifadas pelo próprio estado, mas são invisibilizadas e não merecem comoção na imprensa. Isso é um fato e uma crítica pertinente. Crimes do estado contra a população preta e pobre acontecem em Curitiba, no Parolim e em outros bairros menos “nobres”, no Brasil inteiro.

Raul Pelegrin era branco e rico, mas também dependente químico, uma doença que aflige milhares de pessoas e famílias no Brasil. Culpar a doença pelo crime atroz que ele por pouco não cometeu, no entanto, além de cômodo, é perigoso, pois estigmatiza uma parcela da população que já sofre em diversos aspectos com a adicção, colocando dependentes no papel de potenciais assassinos, o que não se sustenta e deve ser de todas as maneiras repudiado.

Muitos usuários de drogas são pacíficos e fazem mal apenas a si. A dependência faz alguns, principalmente os pobres sem recursos, cometerem pequenos delitos, normalmente em busca de recursos para sustentarem a adicção. Mas não é comum que saiam tentando matar a esmo, apenas por se sentirem contrariados, como Raul fez.

De outro lado, o Brasil carece de política de enfrentamento à questão das drogas no que diz respeito à conscientização e prevenção. Optamos por um caminho que já provou não dar certo, o da criminalização, enquanto países mais desenvolvidos perceberam que, talvez, a melhor alternativa a ser buscada seja a redução de danos.

O estado errou ao não permitir a transferência de Raul Pelegrin para tratamento em local adequado. A defesa diz que, por isso, o estado tem sangue as mãos, pois ele apresentava sinais notórios de que estava na iminência de morrer. Mas quantos detentos não são também dependentes químicos que deveriam gozar do mesmo direito, o de um tratamento em local adequado, mas não contam com advogados para reivindicar isso?

E aqui fica uma provocação aos advogados: não estaria havendo um abuso do expediente de alegar dependência química para tentar abrandar penas, podendo levar a estratégia ao descrédito do judiciário em casos em que realmente é necessário, como o de Raul?

Ao passo em que o estado errou neste caso ao não permitir a remoção de Raul para tratamento, não pode ser responsabilizado pelos erros que levaram Pelegrin até o cárcere. Também não é possível concluir que, mesmo se fosse transferido, Raul sobreviesse.

Raul não é um mártir. Raul não é um herói. Não fosse rico e com bons advogados, talvez sua morte não tivesse tanta repercussão.   

O argumento de que um contingente enorme de detentos pobres, sujeitos a todos os tipos de tratamento indigno, é invisibilizado todos os dias, sem que isso gere comoção, é sim necessário.

A política de encarceramento no Brasil está falida. São quase 700 mil presos no país. Se nem fora da prisão as pessoas têm serviços públicos condizentes, não é de se esperar que no cárcere haja uma melhor situação. E isso é algo a ser enfrentado aqui fora e nas celas prisionais, mais uma vez aludindo aos direitos humanos.

O encarceramento em massa é um desafio de todos os países. Muitos enfrentam o crescimento exponencial no número de presos por meio de aplicação de penas alternativas. É um caminho para crimes leves e que não atentem contra a vida. Não seria para Raul, que tentou matar um trabalhador.

A defesa cobra do estado uma humanidade que seu cliente não teve, e não mostra o mesmo entusiasmo para responder a principal questão: por que Raul cortou aquela corda que quase matou um trabalhador? Essa pergunta nos instiga e estamos trabalhando para tentar entender, traçando um perfil de Raul. Podemos vir a ser criticados também por isso, mas investigar as profundezas humanas, no que têm de pior e melhor, é próprio do jornalismo. Não queremos romantizar nem humanizar um criminoso, mas entender como uma pessoa chega ao ponto de, do nada, atentar contra a vida de um trabalhador.

Podemos adiantar: Raul era um homem de muitos vícios: além da cocaína, ele era viciado em uma plataforma de lives, na qual chegava a passar três dias seguidos online, e em jogos de azar digitais.

Sobre o crime, uma das argumentações é de que ele estaria em surto, sob efeito de drogas, e se sentindo violado e inseguro quanto à sua namorada que estaria por perto do trabalhador, na cobertura onde ele morava. Em uma tentativa de minimizar o ato atroz do cliente, a defesa ainda diz que Raul cortou uma corda secundária. Mas, ao que se sabe, Raul era um empresário, não um alpinista, sendo assim, e ainda considerando que estivesse sob efeito de drogas, é absolutamente improvável que ele soubesse que cortou uma corda de menor importância. Ao tudo indica, ele tentou e quis matar uma pessoa.

A defesa afirma que espera que a morte de Raul levante o debate sobre a gravidade da dependência química. Esse debate sempre será necessário, mas Raul parece não apresentar uma trajetória e comportamento capazes de criar empatia junto à sociedade para estimular a discussão. Raul está morto e também é vítima de um caso em que não há vitoriosos nem nada a comemorar.

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