“É evidente que neste quadrante as direções estão em crise. Mas é um reducionismo forte dizer que a crise é tão somente de direção”
Por Pedro Carrano*
É interessante receber uma crítica do camarada Anísio Garcez Homem sobre meu recente texto “A derrota de Ratinho e a vitória da organização popular“, quando falei em vitória dos trabalhadores no episódio da consulta do governo do Paraná à comunidade escolar sobre o projeto de privatização das escolas.
Na visão de Anísio, falar em vitória geraria uma ilusão nos trabalhadores, uma vez em que, como reconheço, de fato a maior parte das escolas foi até aqui atropelada pelo dispositivo do “quórum” criado pelo governo. Embora, na base e na consulta à comunidade, o projeto foi sim aplamente rechaçado.
No entanto, meu texto enfatizou um aspecto central que Anísio anteriormente vinha menosprezando, e agora não menciona, ou sequer faz alguma forma de auto-crítica: a mobilização pela base, na unidade entre a comunidade escolar, o movimento sindical e popular, envolveu jovens, comunidade, professores, sindicalistas e militantes e, no mínimo, politizou o debate nas escolas públicas e no seu entorno, geralmente de comunidades periféricas.
Em 11 de junho de 2004, no texto “Não é hora de acomodação e sim de armar a ratoeira”, havia escrito Anísio: “Enganam-se aqueles que, nas direções sindicais e como militantes dos movimentos sociais e populares, apregoam voltar à luta apenas nas consultas que serão realizadas nas comunidades escolares sobre a aceitação ou não da entrega da escola a algum “parceiro” empresarial bem “amigo”. Isso é tomar a lei como estabelecida e ponto. É, de certa maneira, reconhecer de forma instantânea o processo de aprovação da lei como legítimo, quando, por exemplo, há uma ação em sentido contrário impetrada no STF”.
No caso dos professores, não se trata de um despropósito de Anísio, é fato. Afinal, o primeiro dia de greve contra o projeto reuniu uma mobilização massiva de 20 mil trabalhadores, mas em um movimento que, no plano institucional da votação da Assembleia Legislativa, foi derrotado no mesmo dia. Tanto nós como Anísio temos o entendimento de continuidade da luta. Porém, entendemos, como o próprio Marx compreendia, ao analisar as jornadas de 1848, que as movimentações e lutas da classe têm avanços e recuos. A massa pode canalizar, retomar fôlego, voltar à cena das ruas. É preciso, neste sentido, habilidade na construção do movimento.
Nesse sentido, num contexto atual defensivo para o movimento sindical, levar o debate para a base se mostrou de fato uma fortaleza importante para a disputa, onde, apesar da cooptação e estrutura de Ratinho Jr, o governador não tinha hegemonia no chão da escola.
Nossa divergência central se dá, então, isso quero destacar, no plano teórico, no fato de que o camarada Anísio, em que pese ser um bom analista internacional, sempre munido de dados sobre o que acontece com a classe trabalhadora na França e EUA, aplica um mesmo método de análise para qualquer situação, principalmente quando se trata da realidade brasileira.
Para Anísio, predomina apenas a “crise/culpa de direção” em relação ao movimento dos trabalhadores. A classe trabalhadora, seguindo o curso dessa tese, estaria em constante estado de ofensiva, mas impedida de realizá-lo pelas direções partidárias e sindicais reformistas; enquanto nossa análise (falo como militante da organização Consulta Popular e atuante no movimento popular urbano), entendemos que trata-se de um momento histórico contrarevolucionário e defensivo da classe trabalhadora. Os dois enunciados, porém, levam a tarefas diferentes para este período.
A posição de Anísio se compara a um general que dissesse a seu exército: avancem sempre, independente das condições objetivas, da moral da tropa, do estado de ânimo à luta. Falta à Anísio o que Mao chamava a atenção para a pesquisa junto à classe trabalhadora, comungando dos seus aprendizados, e, principalmente, entendendo o seu estado de ânimo e condições para a luta – lição central do leninismo, bem destacada pelo teórico cubano Manoel Piñero.
No plano histórico, levamos em conta que a mais recente revolução e tomada do poder do Estado pela classe trabalhadora remonta ao fim da década de 70 e início dos anos 80, na Nicarágua e em Burkina Faso. A queda da URSS e a generalização do programa neoliberal alterou a correlação de forças no plano mundial. No Brasil, o período contrarevolucionário se aprofunda com o golpe de 2016 que derrotou a estratégia institucional da esquerda no governo de Dilma Rousseff, além de aplicar uma série de contrareformas estruturais para a burguesia neoliberal ortodoxa: da previdência, trabalhista, das terceirizações.
Ao responsabilizar apenas as direções, a todo momento e toda circunstância, pela ausência de mobilização, perde-se de vista justamente quais são as tarefas centrais para as organizações de esquerda neste momento. É evidente que neste quadrante histórico as direções estão em crise. Mas é um reducionismo forte dizer que a crise é tão somente de direção.
No documento Resoluções da VI Assembleia Nacional da Consulta Popular, de 2023, afirmamos:
“O número de greves e mobilizações, um dos indicadores da disposição à luta da classe, tem caído fortemente desde 2016. A mais recente greve geral ocorreu somente em 2017. Entre 2020 e 2021, de acordo com o Dieese, 95% das negociações salariais tiveram pautas defensivas, muitas delas as chamadas “greves de desalento” contra o fechamento de unidades de trabalho. O baixo índice de sindicalização no Brasil reduziu-se em dez anos, de 18% para cerca de 10% dos trabalhadores. Ao seu redor, os trabalhadores vivenciaram um cenário de elevação de precarização e desemprego”.
Por isso classifiquei, nesse cenário, a atual movimentação dos professores do Paraná e da comunidade escolar como uma vitória, consciente de que houve vitórias do governo Ratinho, na base do tratoraço, mas que a mobilização envolveu estudantes, politizou, teve um grande rechaço no chão da escola.
Se a mobilização tivesse desconsiderado o movimento defensivo da classe e apenas feito convocatórias soltas e pelo alto certamente não teria alcançado o mesmo resultado e envolvimento na base, gerando frustração. Não somos contrários obviamente à convocatória de plenárias unificadas, e o camarada Anísio muitas vezes chama a atenção para essa necessidade e lança um apelo válido contra o corporativismo. Agora, a atual luta criou um caldo importante para seguir a mobilização (em nenhum momento me refiro que a luta está encerrada, como Anísio busca criticar).
E outra: na luta de classes e na luta política, não se trata somente de um cômputo matemático. Na luta de classes, há derrotas que mantém força acumulada, justamente pela capacidade de politização do processo. E, por outro lado, podem haver vitórias que não se sustentam, como sabemos.
Cito o golpe contra Chávez, em 2002, na Venezuela, quando foi reconduzido ao poder pelo povo. Mas há vitórias, sobretudo institucionais, que não necessariamente levam a uma vitória na luta de classes, caso da própria vitória eleitoral de Dilma Rousseff, em 2014, que não soube romper o cerco golpista, envolver a classe trabalhadora na resistência, o que culminou no golpe de 2016.
Porém, toda uma geração de dirigentes (incluo Anísio aqui), não compreendeu o significado da derrota estratégica da esquerda desde 2016 e a necessidade de uma construção de uma nova estratégia de poder, acreditando ainda que apenas convocatórias pelo alto (em PDF ou num Card) darão conta dos desafios organizativos que estamos vivendo.
A experiência atual mostra que as principais mobilizações do período recente, normalmente capitaneadas pelo segmento dos professores, servidores públicos e pelos movimentos populares, precisam ser construídas, exigem tempo, trabalho e construção, não acontecem como um estampido. As mobilizações convocadas no dia 10 de dezembro pelas Frentes Brasil Popular e Povo Sem medo ilustram esse desafio, devido ao seu esvaziamento. Em Curitiba, havia 50 pessoas no ato.
Por outro lado, estampidos e revoltas espontâneas e circunstanciais também devem ser acompanhados com interesse por nossas organizações e pela comunicação da esquerda com disposição e apoio, mas isso nem sempre acontece – como também aponto no texto: uma esquerda hoje limitada a eventos e sem conexão com as necessidades – materiais e subjetivas – da classe.
A crise de direção reivindicada por Anísio, neste sentido, se completa com outro problema: a crise de dirigismo sem construção e sem a temperatura do ânimo das massas. A saída, de forma geral, não é nem a convocatória voluntarista, muito menos o imobilismo, mas a construção paciente da organização popular, para retomar musculatura, nas condições e no passo da classe.
*Jornalista, escritor autor de História da Comuna de Oaxaca, e militante do movimento popular urbano